“In the beginning God created the heavens and the earth. Now the earth was formless and empty, darkness was over the surface of the deep, and the Spirit of God was hovering over the waters” (Gênesis 1, 1-2).
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Todo mundo conhece o mito de criação cristão. “Que haja luz”, Adão e Eva, o Éden. O mito inaugura o Gênesis, livro que, por sua vez, inaugura a Bíblia. Indiscutivelmente, o começo do começo. De acordo com o mito, em resumo, Deus criou o mundo, os animais, e a humanidade. Deus usou o pó da terra para fazer o homem, e uma costela do homem para fazer a mulher. E Deus criou um lar para ambos, o jardim do Éden, onde nada lhes faltava.
Além de “árvores lindas de todos os tipos, que davam frutas boas de se comer”, o Éden abrigava a enigmática árvore do conhecimento do bem e do mal. Deus disse ao homem para não comer o fruto dessa. Suponho que o mesmo valia para a mulher. Não obstante, instigada pela cobra, ela comeu o fruto proibido. E deu o fruto ao homem, que o comeu também. Furioso, Deus expulsou ambos do Éden, reprimindo-os e vociferando desagradáveis e funestas consequências.
Deus? Não acredito. Homem e mulher gerados por alquimia divina, cobra falante. Que viagem. Frutarianismo? Pior ainda. Pois é. Todo mundo conhece o mito de criação cristão, mas alguém acredita nele? O mito foi perdendo força ao longo dos últimos séculos, na medida em que as ciências foram progredindo. Depois das quatro equações de Maxwell sobre o eletromagnetismo, a cobra falante mostrou-se mais cientificamente inviável? Ah sim, com certeza. Eu também, leitores, não acreditava em parte alguma disso. Nem em uma vírgula. Mas então um dia, no caminho que minhas ponderações revelaram, eu dei uma chance ao mito. Uma chance honesta.
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Dispensando introduções, Deus se pôs a criar o mundo. Para abrigar a humanidade, com alguns retoques, Deus criou o Éden. Mas, paradoxalmente, Deus incorporou “invenções” humanas ao Éden - antes da criação da humanidade. São abundantes e redundantes as referências à domesticação de animais e à agricultura, e há duas referências à mineração. Porra, Deus empregou uma invenção humana - o uso de barro, argila (o joão-de-barro que faça o seu próprio texto) - para criar o próprio homem . De lambuja, a criação carrega alguns conhecimentos astronômicos/geográficos elementares, os quais, não coincidentemente, são essenciais à agricultura.
Como somente pode se concluir, essas invenções não foram concebidas pela humanidade, mas sim por Deus. Quando o casal foi criado, elas já estavam à sua disposição, lá no Éden. E nos é dado a entender que, lá no Éden, o casal não precisava fazer coisa alguma.
Provavelmente entediados, definitivamente ociosos, Adão e Eva comeram o fruto proibido. Sabemos o que se sucedeu. Deus vociferou que, fora do Éden, o homem “terá de trabalhar duramente a vida inteira para que a terra produza alimento suficiente”, “terá de trabalhar pesado e suar para que a terra produza algum alimento. Algum espertinho reclamou que Deus “fez com que ele cultivasse a terra da qual havia sido formado”. A moleza acabou. Fora do Éden, o casal precisaria cultivar a terra. Pelo visto Deus só cultivava a terra do Éden.
Fora do Éden, o casal passou a empregar a agricultura. O casal passou a empregar, suponho, todas as invenções divinas. O casal se apropriou delas ao comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal,. O casal adquiriu conhecimentos. Não diga! E seria muito raso pensar que o casal apenas aprendeu um conjunto finito de técnicas. Não, o casal adquiriu (um tipo singular de) cognição.
A presente interpretação acaba por sugerir que, no princípio, Adão e Eva não tinham cognição. Ou seja, no princípio, só havia animais no jardim divino. Sim!, um animal comeu o fruto. Com caroço e tudo. A semente foi ingerida, o conhecimento enraizou-se, desenvolveu-se, e por fim modificou a criatura, originando a humanidade.
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Alguns milhares de anos depois, finalmente, um picareta de nome Charles Darwin sugeriu que a humanidade teria evoluído dos macacos. Nisso todos nós acreditamos.
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No Éden, como todos os animais, “tanto o homem como a sua mulher estavam nus”. Logo após comerem o fruto proibido - ainda no mesmo parágrafo - eles “perceberam que estavam nus”, e “costuraram umas folhas de figueira para usar como tangas”. Aqui o argumento em voga se apresenta linearmente. Ao contrário das demais, esta invenção, a confecção e uso de vestimentas, foi concebida pelo casal, contiguamente à aquisição da cognição.
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As invenções supracitadas, ao se considerar quando surgiram, apontam a época na qual o mito foi criado/propagado. Se, por exemplo, o mito fosse mais antigo, Deus teria dotado o Éden de pedras que davam lascas boas para ferramentas e de árvores que davam madeiras boas para se queimar.
Falando em queimar, me veio à mente o mito de Prometeu, e sua similaridade com o mito cristão. Em Prometeu, o fogo, uma invenção divina, foi tomada dos deuses e regalada à humanidade. Seria o mito de Prometeu, assim, mais primordial que o cristão?
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Os dois primeiros capítulos remetem a um texto épico. Deus atua com flagrante empolgação, incansavelmente, quase que heroicamente. Assim notamos que a humanidade se orgulhava da sua cognição e das suas invenções. Mas a partir do terceiro capítulo, esse manifesto orgulho dá lugar a uma manifesta objeção, inaugurada pela inequívoca reação divina à “desobediência do primeiro casal”. Por outro lado, assim notamos que a humanidade tinha diagnosticado algo pernicioso associado à cognição. Como se essa fosse um fardo, quiçá uma maldição.
A trilha aqui, infelizmente, começa a minguar. Na iminência de enxotar o casal, Deus disse que “agora o homem se tornou como um de nós, pois conhece o bem e o mal”. Homem equivalente a Deus? Ridículo. Blasfêmia. Sarcasmo? Deus quis dizer que a humanidade não é capaz de lidar com o conhecimento do bem e do mal. A cognição abriu os olhos da humanidade, mas sua visão era míope. Ou seu discernimento? Talvez eu esteja colocando palavras na boca de Deus. Não se discorre como esse porque permeava, contaminava o cotidiano. Nesta hora, costuma-se enveredar por uma análise semântica do termo "conhecimento do bem e do mal", o que não costuma levar a lugar algum.
O mito acaba por aí. Mas enfim, o que de tudo isso nos leva a algum lugar? Alguma parte, alguma vírgula? De mãos dadas com a cognição, a humanidade caminhou por milhares de anos, quiçá milhões, acumulando inovações, modificando o meio e em contrapartida a si mesmo. Ao final de tudo isso, hoje em dia, nós nos orgulhamos da sociedade em que vivemos. Das nossas relações com a natureza e com os nossos pares. Das nossas ocupações profissionais e de si mesmos. Vemos o futuro com muito otimismo. O sarcasmo divino é contagioso. Pois é. Todo mundo conhece o mito de criação cristão, mas alguém acredita nele?
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